Euclides Mance
Solidarius / IFiL
09 / julho / 2013.
Amigos/as
Infelizmente não poderei estar com vocês em Santa Maria, no II FSM da
Economia Solidária.
Mas após ler a seção sobre consumo responsável do documento
orientador, que tem por objetivo provocar reflexões sobre os temas que serão
trabalhados no Fórum, considerei importante enviar minha contribuição ao
debate.
Como vocês sabem, para mim, o consumo é a porta de
entrada na estratégia da revolução das redes. A porta de entrada
não é a produção nem o comércio. Não é o intercâmbio nem a geração de valor
econômico. A porta de entrada é o consumo para o bem-viver, praticado como
consumo solidário.
Mas, infelizmente, o consumo ainda é muito mal-compreendido por vários
teóricos e lideranças da economia solidária. E, em geral, não recebe a devida
atenção pelo conjunto dos atores da economia solidária, no sentido de refletir
sobre como o nosso consumo é estratégico para a sustentação da economia
solidaria e sobre como podemos praticá-lo de maneira solidária.
Se de fato, o consumo pode ser entendido como a etapa final do processo
produtivo, igualmente deve ser considerado como a etapa inicial da
sustentabilidade de tudo o que vive. Não há vida sem consumo ‒ nenhum
ser humano, planta ou bactéria pode viver sem consumir.
É muito diferente entender o consumo (e a economia) a partir do trabalho que
produz valor econômico a ser acumulado ou repartido; ou entender o consumo (e a
economia) a partir da vida, que necessita seguir sustentando a
própria vida, em busca de preservar e expandir a sua liberdade na
realização do seu bem-viver. É importante pensar o consumo e a
economia sob diferentes perspectivas e analisar as possibilidades e limitações
de cada abordagem.
Quando se considera o mundo e o sentido da vida somente a partir do
trabalho, dificilmente se consegue compreender o trabalho a partir do consumo,
o consumo a partir do bem-viver e o bem-viver como um modo de realização
solidária das liberdades públicas e privadas, eticamente exercidas.
Afinal, para que e por que trabalhamos? Para produzir valor econômico?
Para acumular valor econômico? O que dá sentido ao trabalho?
Sob a perspectiva do trabalhador, o seu trabalho está normalmente
associado à possibilidade de obter bens e serviços que, por seu valor de uso,
sirvam para atender às necessidades e aos desejos de consumo, tanto próprios
quanto de familiares. Em se tratando de trabalhadores da economia solidária,
ele está associado, geralmente, não apenas à obtenção de meios para a
realização do bem-viver, mas igualmente à produção de meios de consumo que
possam assegurar o bem-viver das pessoas que irão consumir o que é produzido.
Se podemos dedicar uma parte do tempo de cada dia para trabalhar e outra
para repousar, por outro lado passamos todo o tempo, de todos os dias de nossa
vida, consumindo. Se parássemos de consumir o ar que respiramos ‒ acordados ou
dormindo ‒, em poucos minutos estaríamos mortos. Necessitamos de líquidos
e calor, de nutrientes que circulam pelo corpo e que são consumidos por nossas
células o tempo todo.
Mas quem trabalha para produzir o ar que consumimos? Esse elemento
essencial à nossa vida, ao exercício de nossa liberdade, como tantos outros
elementos servidos pela natureza, não é fruto do trabalho. Não fosse a vida das
plantas, tanto na superfície da terra como nas profundezas dos oceanos, não
teríamos o ar que necessitamos para respirar. E sem ele, estaríamos mortos.
Para muitos é difícil entender que o nosso corpo é também parte da
natureza, dos ecossistemas em que estamos integrados por diferentes fluxos
materiais e sígnicos durante todo o tempo de nossa vida. Entender a economia a
partir do consumo exige entender os fluxos da sustentabilidade do bem-viver que
nos conectam aos ecossistemas e às sociedades humanas, para assegurar a sua
reprodução de maneira sustentável.
Sob essa perspectiva, em primeiro lugar não vem o trabalho, mas o
consumo ‒ o consumo das pessoas, o consumo das famílias, o consumo dos
empreendimentos, o consumo dos governos etc. Mas como assegurar os meios
necessários para sustentar o consumo para o bem-viver de todas as pessoas e, ao
mesmo tempo, preservar o equilíbrio natural dos ecossistemas, sem o qual
estaríamos todos mortos?
Oikos significa casa. Nomos, significa regra. Economia
significa as regras da casa. Quais são as regras adequadas para
assegurar o consumo para o bem-viver de todos e a reprodução natural e
sustentável dos ecossistemas?
As abelhas têm as suas regras e as formigas também. Elas saem de suas
casas e vão pelo mundo em busca dos meios econômicos que sustentem a vida de
suas comunidades. Por que são meios econômicos o pólen ou os pedaços de folhas
levados por elas? Porque são conduzidos para o interior de suas casas, de suas oîkoi,para
serem modificados conforme as normas de suas comunidades ‒ por ação delas
mesmas e da natureza ‒ para gerar outras coisas que, ao final, serão consumidas
em seu interior, para sustentar a vida de cada qual e das suas comunidades.
Assim, para sustentar suas vidas, elas organizam comunidades econômicas. Quem
participa dessas comunidades pode entrar na casa e pode consumir do que aí
está, mas igualmente terá sua função na sustentação econômica da comunidade,
seja a de produzir mel em uma colmeia, seja a de cultivar o jardim de fungos em
um formigueiro ou coletivamente defender a comunidade de possíveis agressores.
De fato, o consumo é a base de sustentação de toda a vida ‒ e não
poderia ser diferente com os seres humanos. Mas nossas sociedades humanas são
muito mais complexas que as sociedades de formigas e de abelhas para o
atendimento das necessidades de seus membros. Nossa economia, não apenas
conecta necessidades e desejos com meios econômicos que
os possam atender (sejam meios servidos pela natureza, sejam meios produzidos
pelo trabalho) mas também com valores econômicos e suas representações
simbólicas, que condicionam ações de consumo, comercialização,
distribuição, produção e finanças, organizadas segundo regras convencionadas
por comunidades e Estados em sistemas morais, éticos e legais ‒ para ficar
apenas nessa sumária descrição.
Nas comunidades humanas há pelo menos dois modos diferentes de
realizar-se o encontro das necessidades e desejos com os bens
e serviços que os possam satisfazer.
Um modo está voltado a assegurar o bem-viver de quem consome e de quem
trabalha, para gerar e tornar acessíveis a todas as pessoas da comunidade, de
forma sustentável, os meios de consumo requeridos com base no princípio
solidário de distribuição e reciprocidade.
O outro modo subordina o consumo à acumulação de valor econômico. Nesse
último caso, o consumidor somente poderá obter meios econômicos para atender às
suas necessidades se oferecer valor econômico em troca deles.
Não vou desenvolver aqui o tema do valor econômico, de suas formas de
representação semiótica e das diferentes modalidades de intercâmbio econômico ‒
como fiz em Constelação Solidarius. O que me interessa é apenas
destacar que, na estratégia da economia solidária, o consumo
para o bem-viver tem de ser a porta de entrada e não o momento final.
Sob essa perspectiva, o consumo é a primeira etapa a
ser organizada e não a última. A partir dele devemos organizar a aquisição
solidária. E, a partir desta, devemos organizar a comercialização
solidária ‒ isto é, empreendimentos que vão vender produtos e serviços
para nós mesmos, que somos os seus proprietários, e para outros consumidores
igualmente atendidos ‒ bem como organizar os sistemas não-monetários de
intercambio solidário.
Assim, é a partir de nosso consumo, de nossos intercâmbios, de nossas
compras e de nossas organizações de comércio que teremos melhores condições de
dar sustentação à produção e aos investimentos em novos
empreendimentos.
Nas chamadas economias desenvolvidas, de cada cem postos de
trabalho, 3 estão na agricultura, 23 na indústria e 74 no comércio e serviço.
Também neste contexto, é preferível partir do consumo, organizar a aquisição
(comércio e intercâmbios solidários) e, com os fluxos econômicos das aquisições
e intercâmbios, dar sustentação aos serviços, à industria e à agricultura,
produzindo bens e serviços a serem consumidos.
Mas qual é a abordagem geralmente adotada para o tratamento do tema do
consumo na economia solidária no Brasil?
Na abordagem geral, o tema do consumo é quase sempre relegado a um plano
inferior frente à importância dada ao tema do trabalho e da produção do valor
econômico ‒ tanto do ponto de vista teórico quanto estratégico. Mais que isso,
pode-se mesmo dizer que alguns teóricos e lideranças da economia solidária,
inadvertidamente, transpõem para o tratamento do consumo na
economia solidária as mesmas categorias analíticas com as quais tratam do
consumo na economia capitalista.
Ainda que as suas análises sejam dialéticas, criticando
sempre o consumismo e seu impacto ambiental e as diversas formas de alienação
do consumo, elas têm uma grande dificuldade de partir da realidade material do
consumo dos meios econômicos ‒ servidos pela natureza ou pelo trabalho humano ‒
para pensar a sua importância no desenvolvimento da economia solidária como um
sistema econômico em construção.
Ao invés de partir da análise da realidade para produzir conceitos e
categorias que permitam compreender a economia solidária em sua complexidade e
contradições, em geral aplicam inadvertidamente à economia solidária noções
teóricas que surgiram no estudo da economia capitalista, não prestando maior
atenção à diferença existente entre o valor econômico e o capital,
que é apenas uma das possibilidades de realização histórica do valor econômico.
Tal abordagem do consumo está longe de partir da vida real que pulsa em
corpos humanos, em busca do ar que eles necessitam a todo instante para seguir
vivos; está longe de partir das necessidades humanas em seu conjunto, que
precisam ser satisfeitas a cada dia com elementos que resultam da ação dos
ecossistemas ou com produtos que resultam do trabalho humano, para que as
pessoas e sociedades possam seguir existindo. Está longe de partir da realidade
de consumo compulsório dos empobrecidos, que não têm recursos para comprar o
básico que lhes permita atravessar o mês sem experimentar a angústia da falta
do alimento. Está longe de partir da realidade da vida dos seres humanos, como
uma teia que integra, sempre e simultaneamente, fluxos materiais e sígnicos que
se retroalimentam, condicionados por diferentes padrões organizativos e sob
distintas conformações históricas de poder.
Partem sempre da abstração do trabalho produtivo, como
sendo aquele que amplia o capital, e da fórmula básica da
reprodução ampliada do capital (D-M-D'), que significa converter o dinheiro em
mercadoria (força de trabalho e meios de produção que, combinados no processo
produtivo, geram nova mercadoria), para depois converter essa nova mercadoria
outra vez em dinheiro, pela sua venda no mercado, recuperando-se assim o valor
econômico anteriormente investido, acrescido de um excedente que é fruto do
trabalho produtivo explorado ‒ trabalho esse que produziu o bem ou serviço que
foi vendido no mercado. E, nesse esquema, o consumo fica associado à compra da
mercadoria; e a compra da mercadoria é compreendida como um dos momentos
necessários para a reprodução ampliada do capital.
E então, aplicam à economia solidária as mesmas
categorias de análise, que foram criadas para explicar a reprodução ampliada do capital.
Como se tais categorias fossem adequadas para compreender ou projetar o
desenvolvimento da economia solidária como sistema econômico.
Quero salientar que não me parece correta essa extrapolação inadvertida
do rigoroso trabalho teórico de Marx, relacionado à investigação da reprodução
ampliada do Capital e às suas múltiplas implicações. Penso que, além do
problema de compreender a reprodução do capital, a questão está em compreender
o desenvolvimento da economia solidária e o papel do consumo nesse
desenvolvimento. Muito debate se fez em torno dos esquemas de reprodução do
capitalismo e dos movimentos de conversão do capital em meios de consumo e em
meios de produção e o papel que aí desempenha o sistema financeiro. De minha
parte, tratei do tema da reprodução do valor na economia solidária na Revolução
das Redes [1999, p.136-156] e em Constelação Solidarius [2008,
p. 35-56].
Mas nessa esteira de extrapolação conceitual, que analisa a economia
solidária com as categorias que explicam o capital, emergem duas variantes
principais.
Uma delas conclui que a economia solidária ‒ por sua integração com o
sistema capitalista ‒ opera tão somente como subsistema de reprodução do
próprio capitalismo, uma espécie de mecanismo de compensação para os excluídos,
cujo tempo de trabalho não mais interessa à reprodução ampliada do capital ‒
particularmente numa época em que cresce o volume de capital acumulado com a
reprodução de bens intangíveis e que menos mão de obra é necessária para
produzir um mesmo volume de bens tangíveis, os quais são cada vez mais baratos
e com a vida útil sempre mais curta para manter a continuidade de vendas das
empresas e a recuperação ampliada do valor investido em ciclos cada vez
menores.
Outra variante, por sua vez, entende que a economia solidária, para
crescer, necessita replicar o mesmo modelo de reprodução ampliada do valor
(D-M-D'), o que exige conquistar mercados. Não se trata, portanto, de gerar
soluções para satisfazer as necessidades de consumo das pessoas, para assegurar
o seu bem-viver. Trata-se de produzir, vender a produção nos mercados e obter
um valor maior que o investido anteriormente, para poder realizar novos giros
de reprodução ampliada do valor e, desse modo, realizar o desenvolvimento das
forças produtivas da economia solidária.
Mas há um problema. Para que a mercadoria posta no mercado seja
comprada, é necessário que o comprador ofereça uma certa quantidade de dinheiro
em troca do produto, no mesmo valor do preço cobrado. Então, temos, por um
lado, o drama dos produtores, que têm oferta, mas não têm quem compre os seus
produtos, pois sua oferta não é capaz de enfrentar a concorrência de mercado dos
grandes produtores capitalistas que praticam preços sempre mais flexíveis. E,
por outra parte, o drama dos consumidores empobrecidos, que não têm dinheiro
para comprar os produtos e serviços que são necessários ao seu bem-viver.
Uma variante dessa linha ‒ concluindo que a concorrência de mercado
nunca será vencida pelos empreendimentos solidários, pois o seu modelo
estrutural de acumulação de valor lhes impede de ter excedentes suficientes
para enfrentar as empresas capitalistas, pois praticam o preço justo ‒ acredita
que somente o Estado, subvencionando empreendimentos solidários ou praticando
as compras públicas, poderia prover os valores econômicos necessários para dar
algum suporte ao desenvolvimento da economia solidária, para que ela consiga
elevar a ocupação dos trabalhadores e reduzir o desemprego.
Assim, com base nessas análises e estratégias que resultam da
extrapolação para a economia solidária dos esquemas teóricos de reprodução
ampliada do capital, os cenários futuros para a economia solidaria seriam
converter-se em algo parecido com a economia social europeia ou reinventar um
cooperativismo um pouco mais autêntico no exercício da autogestão ‒ mas que,
igualmente, seriam alternativas incapazes de engendrar a superação do sistema
capitalista pelas razões já analisadas, relacionadas à incapacidade estrutural
das alternativas solidárias em promover a acumulação de valor para
investimentos que lhes permitissem vencer a disputa por mercados.
Porém, quando partimos de uma outra perspectiva para tratar da economia
solidária, não sob a lógica da reprodução do capital mas da produção e
distribuição sustentável dos meios de consumo para o bem-viver das pessoas,
chegamos a conclusões muito diferentes sobre sua capacidade de expansão e de
superação do capitalismo.
De fato, o valor de troca da mercadoria (do produto
oferecido no mercado) somente pode existir porque o produto corresponde a um valor
de uso, isto é, pode servir a alguma finalidade, atendendo a alguma
necessidade, desejo ou propósito. E esse valor de uso pode ser
plenamente realizado no consumo sem que o produto tenha se
convertido antes disso em mercadoria. E não é preciso da inteligência humana
para reproduzir e distribuir o valor de uso sem associá-lo ao valor de troca,
pois no mundo das formigas e das abelhas há meios econômicos, com valor de uso,
que atendem a diferentes necessidades e propósitos. Mas não há mercadoria, nem
tampouco valor econômico ou representação de valor econômico.
A grande beleza da espécie humana é que somos muito mais livres do que
as formigas e as abelhas. Mas o fato de sermos livres não significa que não
possamos organizar nossos fluxos econômicos de modo a expandir, ainda mais, as
liberdades de todos, reorganizando a economia em função dos valores de uso dos
bens e serviços para o bem-viver de todos e não em função da acumulação do
valor econômico pela venda desses produtos nos mercados. De fato, a economia
humana é muitíssimo mais complexa do que os processos de produção, distribuição
e de consumo de um formigueiro ou de uma colmeia. Mas, em última instância, é o
consumo dos meios econômicos gerados pelo trabalho e pela natureza o que
sustenta a sociedade humana ‒ do mesmo modo que o consumo está na base de
sustentação de qualquer sociedade e de toda a vida. E é no consumo que temos a
realização dos valores de uso.
Mas, então, o que é o valor de uso de um produto? É a
qualidade pela qual o produto pode ser consumido ‒ pode ser usufruído, usado,
utilizado, pode servir a algum propósito como meio. Em outras palavras, o que
possibilita que o produto oferecido como mercadoria possa mediar a acumulação
de valor econômico é o fato de que, antes de ser consumido, terá de ser trocado
por valor econômico no mercado ‒ valor a ser pago pelo comprador que irá
consumi-lo. E como não há produto humano sem trabalho, quem produz o bem ou
serviço ‒ que possui valor de uso e que é condição de acumulação do valor
econômico com sua troca no mercado ‒ são os trabalhadores.
Mas será o mercado capitalista um deus imortal? O valor de uso daquilo
que nos falta para o nosso bem-viver estará subordinado para sempre ao valor de
troca que se realiza nos mercados? As empresas de economia solidária deverão
para sempre dobrar seus joelhos, subordinar-se aos imperativos desses mercados
e submeter o valor de uso ao valor de troca, para recuperar com algum excedente
o valor investido e alcançar a sua sustentabilidade? E o que essas empresas
solidárias farão frente às pessoas que estão na pobreza extrema e não têm
dinheiro para pagar pelo valor de troca dos meios de consumo que elas
necessitam para realizar o seu próprio bem-viver?
Ora, o capitalismo ainda é o sistema hegemônico e grande parte dos
fluxos econômicos da economia solidária está subordinado a ele. Mas quando os
atores da economia solidária conseguem desviar esses fluxos econômicos da
reprodução ampliada do capital para direcioná-los à reprodução ampliada dos
valores de uso para o bem-viver das pessoas nos circuitos e redes da economia
solidária, esses fluxos econômicos passam a operar no desenvolvimento das
forças produtivas da economia solidária.
Há diferentes modos de reorganizar nossos fluxos econômicos para irrigar
o desenvolvimento da economia solidária. O modo que me parece melhor é partir
sempre do consumo (das famílias, dos empreendimentos e
governos). Organizar então, a aquisição solidária, seja em compras
com dinheiro nos mercados seja em intercâmbios não-monetários em redes
colaborativas de economia solidária, com representações de valor apropriadas
para o registro das transações operadas em seu interior. A seguir, trata-se de organizar
os empreendimentos de comercialização que vão atender aos consumidores
solidários. E assim, com o consumo organizado e o suporte da comercialização
constituído, dar sustentação aos empreendimentos produtivos de bens e
serviços e ‒ com os excedentes em dinheiro e os créditos solidários
não-monetários respaldados na capacidade de trabalho das pessoas ‒, avançar no desenvolvimento
tecnológico necessário ao atendimento do bem-viver de todos, de modo
ecologicamente sustentável.
Como parece muito difícil entender esse raciocínio que pensa a economia
solidária considerando seus fluxos econômicos e que remonta as cadeias
produtivas a partir do consumo, vejamos dois exemplos com números concretos da
realidade brasileira.
O mapeamento da economia solidária levantou a existência de 1,7 milhões
de trabalhadores atuando em empreendimentos autogestionados no Brasil. Mas
facilitemos as contas e arredondemos para baixo esse número, para apenas um
milhão de famílias.
Se partíssemos da auto-organização desses consumidores e se cada família
consumisse o equivalente a cem reais por mês na economia solidária, em
mercadinhos, feiras, dos seus vizinhos, etc, teríamos um faturamento anual
equivalente a R$ 1,2 bilhão. Quantos mercadinhos e feiras poderiam ser
sustentados com esse consumo? E quantos empreendimentos solidários poderiam
depois valer-se desses mercadinhos em suas atividades de comercialização? Se um
centavo de cada real movimentado fosse destinado a um fundo nacional de
economia solidária, teríamos R$ 12 milhões de reais anuais para investimentos.
Mas se esse mesmo um milhão de pessoas também se organizasse em sistemas de
intercambio não-monetário e se essas pessoas gerassem créditos recíprocos, com
representações de valor criadas por elas mesmas (notas de papel ou créditos
eletrônicos movimentados por telefone celular), no valor de cem créditos por
pessoa ‒ para intercâmbios não monetários entre elas mesmas ‒ elas poderiam ter
o correspondente a mais de um bilhão de reais em produtos e serviços
movimentados ao ano com transações não-monetárias para as quais não
necessitariam de dinheiro. No total, seria o equivalente a mais de dois bilhões
de reais, movimentados em um ano no interior da própria economia solidária com
transações monetárias e não-monetárias no próprio setor.
Num segundo exemplo, consideremos as populações atendidas nos programas
de transferência de renda ‒ os mais pobres entre os mais pobres. O programa Brasil
Sem Miséria alcançou 22 milhões de famílias. Se cada uma dessas
famílias consumisse apenas R$ 50,00 por mês na economia solidária, isso daria
um consumo mensal de mais de um bilhão de reais. Se elas se
integrassem em sistemas de intercâmbio não-monetário e trocassem entre si o
equivalente a cinquenta reais por mês em bens e serviços, poderiam ter acesso a
produtos que totalizariam o valor de mais de um bilhão de reais por mês sem
precisar gastar um real em sua aquisição. Integrando as duas modalidades,
seriam movimentados por mês o correspondente a mais de 2 bilhões de reais na
economia solidária. Se um centavo de cada real movimentado no bilhão de reais
referente a compras fosse destinado a um fundo de economia solidária, teríamos
10 milhões de reais todo mês para novos investimentos. E teríamos esse
resultado simplesmente satisfazendo a uma pequena parte das necessidades das
populações mais pobres do Brasil.
Mas como sempre é difícil pensar a realidade a partir do consumo e das
diferentes possibilidades de atendê-lo, frente a essas duas situações, os
trabalhadores da economia solidária tendem a se perguntar: como é que vamos
fazer chegar até eles os nossos produtos e serviços, para que eles possam
comprá-los? Como vamos convencê-los a comprar nossos produtos? Mas a pergunta
certa não é sobre como vamos vender para essas pessoas, como vamos convencê-las
a comprar ou com que dinheiro elas vão comprar. A pergunta certa é: como nós
mesmos que somos atores da economia solidária vamos atender às nossas próprias
necessidades de consumo de maneira solidária? A pergunta é sobre como esses 22
milhões de famílias poderão se organizar solidariamente para atender às suas
próprias necessidades de consumo.
Fato é que os consumidores não parecem ser considerados como um segmento
da economia solidária. E os atores da economia solidária parecem não pensar
sobre como exercer e ampliar a sua participação na economia solidária como
consumidores.
Quando em geral os atores da economia solidária são segmentados em
empreendimentos econômicos solidários, entidades de assessoria e fomento e
gestores públicos, vemos que os consumidores, para estar incluídos nessa
segmentação, acabam subsumidos na categoria de empreendimentos. Mas os atuais
consumidores da economia solidária, de fato, não são empreendimentos coletivos,
supra-familiares, constituídos por trabalhadores autogestionados que se
organizam para praticar o consumo solidário.
De fato, transpor para o mapeamento e análise do consumo na economia
solidária a mesma tipologia e metodologia geradas para mapear empreendimentos
produtivos, não é uma solução adequada para dimensionar a atividade do consumo
no próprio setor da economia solidária. Para que alguém seja um consumidor da
economia solidária não é necessário estar integrado em algum empreendimento
coletivo, ser trabalhador urbano ou rural, fazer parte de alguma organização
permanente, registrada ou informal. Para ser consumidor da economia solidária,
basta que os fluxos econômicos do consumo realizado por essa pessoa
realimentem, de algum modo, os circuitos da economia solidária.
Há várias maneiras dos consumidores obterem produtos e serviços. E a
maior parte delas pode ser reorganizada sob os princípios da economia solidária
para a realização do bem-viver. Uma delas é comprar solidariamente, usando
recursos monetários para a aquisição. Mas há outras diferentes maneiras de se
obter produtos e serviços para o consumo pessoal e familiar que não passam pelo
mercado em sua última transação, as quais o IBGE agrupa na categoria de consumo
não-monetário, cujo montante é contabilizado na Pesquisa de Orçamentos
Familiares como rendimento não-monetário das famílias.
O IBGE chama de consumo não-monetário o consumo de bens e serviços que
foram obtidos sem pagamento monetário pelo consumidor. Aqui se inscrevem as
modalidades de troca, produção própria, retirada do negócio e doações, entre
outras. Tais produtos referem-se a tudo que seja obtido e que, “pelo menos na
última transação, não tenham passado pelo mercado”1. Para as famílias de rendimento
(monetário e não-monetário) não superior a R$ 830,00 por mês, 25,8% de seu
consumo é não-monetário. Como se tratam de 12,5 milhões de famílias, temos um
consumo mensal aproximado a R$ 2,6 bilhões em produtos e serviços obtidos a
cada mês sem que haja pagamento de um real por eles. Essa é uma das facetas da
realidade concreta do consumo no Brasil que precisamos levar em conta para
compreender melhor os fluxos econômicos em nosso país. Ora, como essas famílias
poderão ampliar tal consumo não-monetário, referente a produção própria, trocas
e retirada do negócio para obter um volume ainda maior e mais diverso de meios
de consumo para o atendimento do seu próprio bem-viver? Quanto desse volume
resulta de atividades e intercâmbios que poderiam ser caracterizados como ações
de economia solidária? Como a economia solidária pode fortalecer-se com a
organização e ampliação desse tipo de consumo?
O IBGE mostra também que outros 26,7% do consumo dessas famílias são
sustentados com transferências públicas (aposentadorias, pensões, programas
sociais de complementação de renda etc). Portanto 52,5% do rendimento que
sustenta o consumo dessas famílias não advém de remuneração monetária do
trabalho. Em outras palavras, o trabalho remunerado em dinheiro é a fonte que
sustenta apenas 47,5% do total de consumo das famílias que vivem com até R$
830,00 por mês no Brasil inteiro, campo e cidade. O que isso significa para a
economia solidária? Como esses consumidores poderiam se organizar para
canalizar esses 26,7% de consumo ‒ que é sustentado todo mês com transferências
públicas que são sempre estáveis ‒ para o setor da economia solidária? Essa
cifra representa R$ 2,7 bilhões em fluxos de valores estáveis no sustento do
consumo mensal dessas famílias, valores esses que poderiam ser movimentados em
sistemas de compras solidárias no interior da economia solidária.
De fato, a organização dos consumidores no interior da economia
solidária é ainda um grande desafio. E não se deve partir de modelos prontos,
na forma de cooperativas ou associações, imaginando que eles sejam “a” solução
‒ embora funcionem muito bem em muitos lugares e mereçam ser promovidas pelo
Brasil afora. Mas é preciso gerar também outras diferentes soluções para os
diferentes segmentos e realidades dos consumidores em nosso tão grande país. É
preciso considerar com muita atenção os sistemas de rede, a organização de
comunidades e nodos colaborativos, que se interligam com outros grupos, e que
podem ter o mesmo potencial de mobilizar milhões de pessoas, não apenas para
manifestar-se em ruas e praças, mas igualmente para consumir de modo solidário,
tornando-se atores da economia solidária ‒ tão importantes como aqueles que
produzem na economia solidária. Pois não avançaremos na construção de um novo
sistema econômico pós-capitalista se não inventarmos as soluções necessárias
para a superação dos nossos próprios desafios.
Há vários recursos tecnológicos disponíveis atualmente que podem ser
usados para facilitar a organização de comunidades e redes colaborativas de
economia solidária. Tais recursos permitem mapear os fluxos econômicos,
partindo do consumo das famílias, empreendimentos e governos; permitem projetar
empreendimentos sustentáveis para o atendimento dessas demandas de consumo
mapeadas; e facilitam a organização de redes econômicas que dinamizam as
transações monetárias e não-monetárias (com bilhetes de papel e créditos
eletrônicos movimentados por telefone celular) que permitem criar a quantidade
de representação de valor na magnitude necessária ao encontro das necessidades
de consumo com as ofertas de bens e serviços produzidos em redes, nodos e
comunidades.
É importante salientar que a economia solidária é diferente da economia
capitalista. Que o desenvolvimento da economia solidária deve engendrar um
sistema sócio-econômico pós-capitalista, se ela pretende ser realmente uma economia
de libertação. E que não se pode transportar categorias analíticas,
conceitos e esquemas teóricos que explicam a reprodução ampliada do capital
para compreender ou projetar, com eles, o desenvolvimento da economia
solidária, pois isso induz a cometer vários erros teóricos e estratégicos.
De fato, os empreendimentos de economia solidária podem seguir
reproduzindo o capitalismo, mas não pelo motivo de menor capacidade de
acumulação de valor com a venda das mercadorias com preços justos num mercado
capitalista injusto. E sim por não canalizar seus fluxos de consumo para o
próprio setor da economia solidária; por seguir operando com a mesma lógica de
disputar mercados ao invés de organizar redes econômicas que remontem as
cadeias produtivas a partir do consumo; por seguir adotando a mesma lógica
capitalista de disputar mercados entre si, ao invés de adotar uma lógica
solidária de rede colaborativa fundada na confiança recíproca.
A fórmula D-M-D' é válida para compreender a reprodução ampliada de
valor sob a forma de capital, desde quando se detalhe o papel do sistema
financeiro no processo de antecipações da realização do valor investido na
produção de meios de consumo ou na produção de meios
de produção. Em outras palavras o sistema de crédito permite que as pessoas
e empresas possam comprar se endividando, na esperança de saldar as dívidas das
compras passadas com os recebimentos que imaginam obter no futuro. E essa
formula também vale para uma parte dos movimentos de realização do valor na
economia solidária, quando as vendas são operadas sob a lógica do mercado. Mas
nesse caso, o valor a mais obtido não pode ser acumulado de maneira privada
pelos sócios do empreendimento e sim usado em proveito da expansão da economia
solidária ‒ através de fundos solidários, bancos comunitários ou outros
mecanismos. Pois se assim não fosse, embora autogestionados, tais
empreendimentos teriam adotado completamente a mesma lógica de acumulação capitalista
do valor econômico.
Mas não é com essa lógica de acumulação de valor que a economia
solidária irá superar o capitalismo. O que permite à economia solidária superar
progressivamente o capitalismo e, assim, construir outro sistema econômico de
caráter pós-capitalista, é reorganizar seus fluxos econômicos de maneira a
satisfazer sempre mais os seus consumos no próprio setor da economia solidária.
Na realização desses fluxos, os créditos solidários não operam como
antecipação de valor econômico e sim como representação de valor econômico,
podendo ser usados na obtenção de bens e serviços. Tais créditos solidários
operam como representação de valor e não como reserva
de valor, pois não se oferece nenhuma propriedade privada que possa ser
liquidada em valor econômico em sua garantia. Os créditos solidários estão
respaldados na capacidade que as pessoas têm de trabalhar e de produzir meios
de uso. Tais meios de uso são oferecidos como forma de retribuição do crédito
recebido da comunidade. Uma vez gerados, os créditos circulam entre os
participantes como meio de intercâmbio, substituindo o dinheiro nas transações
realizadas. A expectativa de retribuição de bens e serviços em troca dos
créditos recebidos se funda na confiança entre as pessoas, mas pode ser
igualmente suportada em contratos legalmente firmados que obriguem os
participantes a retribuir à comunidade o mesmo volume de créditos inicialmente
recebido, caso eles venham a sair do sistema de intercâmbios. Tais créditos, a
serem restituídos, são obtidos em troca de bens e serviços, ou simplesmente em
horas de seu tempo de trabalho, oferecidos pelo participante à comunidade.
O intercâmbio de meios de uso por esses créditos, os quais são
intercambiados novamente por meios de uso, caracteriza a realização de
transações não-monetárias no interior da economia solidária. O volume de
créditos que pode ser gerado sustentavelmente, para o atendimento das
necessidades de consumo final ou de consumo produtivo, está relacionado à
capacidade do participante (pessoa ou empreendimento) em oferecer meios de uso
à comunidade, com base em sua capacidade de trabalho e das forças produtivas
mobilizadas com esse trabalho.
Assim, os fluxos da economia solidária não podem ser impedidos ou
dificultados de realizar-se pela escassez do dinheiro que medeia as compras e
vendas nos mercados, mas devem estar suportados na abundância dos créditos
solidários que podem ser gerados sustentavelmente pelos seus atores, segundo
sua própria capacidade produtiva e de consumo no interior de redes
colaborativas.
Na transição do sistema capitalista para o sistema da economia
solidária, quanto mais as necessidades de consumo das pessoas e dos
empreendimentos forem atendidas em transações não-monetárias no interior de
redes colaborativas, usando-se para tanto créditos solidários ‒
gerados por eles mesmos, com base na confiança de retribuição que têm em si
mesmos, por sua própria capacidade de trabalho, de produção e de consumo ‒
menos valor econômico sob a forma de dinheiro será destinado
pelas pessoas e empreendimentos a meios de consumo, seja para consumo final
seja para consumo produtivo. E assim, mais dinheiro haverá na economia
solidária para ser investido em meios de produção que ainda não sejam servidos
por ela mesma.
Mas o importante não é que as pessoas deixem de consumir para investir
no desenvolvimento das forças produtivas da economia solidária e sim que
satisfaçam o seu consumo para o bem-viver com produtos e serviços
da economia solidária. Aqui se articulam dois laços de retroalimentação. O laço
de auto-reforço econômico, pois quanto mais elas consomem da economia
solidária, mais a economia solidária pode se expandir pela produção dos valores
de uso que são intercambiados de maneira não-monetária ou monetária. E o laço
de auto-equilibração ecológica, que condiciona esse desenvolvimento
econômico aos parâmetros da sustentabilidade dos ecossistemas ‒ pois se assim
não fosse, a expansão do crescimento econômico levaria à própria destruição do
bem-viver de todos.
Não se trata, portanto, de defender o crescimento econômico nem o
decrescimento econômico, mas o asseguramento dos meios de consumo para o
bem-viver de todos, o que pode ser obtido reduzindo-se os impactos ambientais
do consumo, simplesmente aumentando a vida útil dos produtos. Se lâmpadas
feitas na economia solidária, por exemplo, durassem cem anos em vez de um ano,
reduziríamos o impacto ambiental da produção de lâmpadas em aproximadamente 99%
em relação ao atual ‒ mas ninguém teria de se privar das lâmpadas para atender
a sua necessidade de luz.
Mas, pela lógica de acumulação do capital, essa redução de vendas
significaria não apenas a redução de acumulação de valor, mas igualmente a
geração de desemprego nas empresas produtoras dos bens cuja vida útil fosse
ampliada.
Daí porque a economia solidária tem de se livrar dessa armadilha de
condicionar a sustentabilidade do consumo e da produção à reprodução ampliada
do valor pela realização da venda dos produtos nos mercados. E, em vez disso,
ela deve assentar essa sustentabilidade na geração de créditos solidários,
ancorados em sua capacidade de produzir os meios econômicos que sejam
requeridos para a realização do bem-viver de todos.
Nesta etapa de construção do novo sistema econômico é necessário
organizar fundos solidários de compensação que permitam aos membros de cada
rede ‒ sob certas condições ‒ converter seus créditos em dinheiro ou
em créditos usados por outras redes, para concluir operações
no âmbito do mercado ou no âmbito de outras redes.
Por fim, gostaria de transcrever e comentar brevemente algumas passagens
sobre a definição de consumo apresentada no documento distribuído para o II FSM
da Economia Solidária, como contribuição ao debate.
“Entendemos por consumo a aquisição de bens e/ou serviços que se
produzem para venda, ou seja, a compra de bens e/ou serviços de qualquer
caráter.”
( II FSM. p. 10)
Essa definição de consumo, para mim, é bastante inadequada. Consumir não
é comprar. Para o capitalista é necessário que a mercadoria seja vendida para
que ele tenha lucro. Mas do ponto de vista do consumidor, o consumo está
relacionado, primeiramente, à qualidade do bem ou serviço em atender à sua
necessidade ou desejo. O consumo, portanto, não deve ser confundido com a
obtenção do que é consumido. E mesmo para a obtenção de meios de consumo pelas
famílias, essa definição não seria adequada, pois como vimos, no Brasil, o
equivalente a R$ 2,6 bilhões em bens e serviços são obtidos a cada mês para
consumo em domicílio, sem que haja pagamento monetário por esses produtos,
conforme indica a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE. Cabe ainda
recordar o consumo de equipamentos e serviços públicos, que são oferecidos
gratuitamente à população pelo Estado, como também o consumo de elementos que
nos são servidos naturalmente pelos ecossistemas e que, por isso mesmo, não são
comprados.
“Podemos dizer que esta fase da economia é muito importante, já que se
consome o que se produz e que deixamos a primeira interrogação: Quê consumimos?
O consumo diz o que somos (“Somos o que consumimos”) por isso tem um papel
importante na relação com o mercado, as pessoas e as organizações que fazem
parte desse consumo.” (II FSM, p.11).
Além de destacar o papel do consumo em relação ao mercado, pessoas e
organizações, seria importante que a frase destacasse igualmente o estratégico
papel do consumo para a sustentabilidade das próprias iniciativas de economia
solidária.
Por outra parte, na expressão “se consome o que se produz”, os sujeitos
do consumo e da produção ficam indeterminados. Quem são os sujeitos do consumo
e da produção? São os seres humanos? Se a resposta for sim, cabe salientar que
elementos essenciais, que consumimos a todo instante, são servidos pela
natureza e não são produtos do trabalho humano. E que, se efetivamente somente
se pode consumir o que existe, por outra parte também nem tudo o que é
produzido pelos seres humanos é consumido ou consumível por eles.
De fato, os seres humanos não produzem apenas bens e serviços como meios
econômicos que, pelo seu valor de uso, podem atender às nossas necessidades e
desejos. Pois não só o trabalho produz, mas o consumo também produz. E do mesmo
modo que não há produção sem consumo (de matérias, trabalho, etc.), também não
há consumo sem produção.
O consumo produz, entre outros resultados, a satisfação de necessidades
e desejos e igualmente pode sustentar o exercício de nossas liberdades, como
também pode aniquilá-las, como no caso do consumo de entorpecentes por
dependentes químicos. Mas o consumo também produz descartes e resíduos que
contaminam os ecossistemas. Os lixões de nossas cidades, mostram uma parte
importante do que é produzido pelo consumo doméstico. Do ponto de vista do
bem-viver é muito importante considerar economicamente o tratamento dos
resíduos produzidos pelas sociedades. Muitos materiais usados na produção não
são biodegradáveis e são de difícil reaproveitamento ou reciclagem.
Assim, toneladas de produtos gerados pelos seres humanos a cada hora não são
consumidos por eles. E toneladas de meios econômicos consumidos pelos seres
humanos a cada hora, não são produzidos pelos seres humanos.
Desse modo, nem tudo o que os seres humanos produzem eles consomem e nem tudo
que eles consomem eles produzem.
Bem, termino por aqui. Pois meu objetivo não é fazer comentários sobre o documento
orientador, apenas algumas reflexões que contribuam no debate sobre o consumo.
Sobre o tema do consumo solidário, conceito que criei em
1998 juntamente com o conceito de consumo para o bem-viver, eu
recomendo a leitura da seção 1.4 do livro Redes de Colaboração
Solidaria [Vozes, 2002, p.37s], intitulada “O Consumo Solidário e a
Construção de uma Sociedade Pós-Capitalista.” Sobre as distinções entre consumo
final, consumo produtivo, consumo alienado, consumo forçoso, consumo para o
bem-viver e consumo solidário eu recomendo o verbete sobre “Consumo
Solidário” que escrevi para o dicionário A Outra Economia [Veraz,
2003, p.44s].
Grande abraço a todos/as
Euclides Mance
Referência
II FÓRUM SOCIAL MUNDIAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA ‒ Outra economia acontece.
Santa Maria, 2013.